Surpreendidos pelo avanço do processo de implementação de ferrovia na região Nordeste Paraense, quilombolas, indígenas, camponeses, agroextrativistas e ribeirinhos estiveram reunidos durante dois dias para tentar compreender o processo que vem sendo articulado a passos acelerados pelo Governo Estadual em parceria com empresas privadas. A mobilização iniciou após o susto dos comunitários em descobrir que as datas de audiências públicas para o licenciamento já estavam marcadas em diversos municípios, sem ao menos terem sido consultados previamente sobre a intenção do empreendimento. A indignação com os fatos é pautada na carta de repúdio produzida coletivamente ao fim do encontro.
Reunidos durante os dias 05 e 06 de agosto, na comunidade quilombola Laranjituba e África, em Abaetetuba, tendo alertado o maior quantitativo de comunidades possível, representantes da Associação Quilombola do Baixo Caeté-África e Laranjituba (AQUIBAC) e demais moradores e moradoras da região tiveram a oportunidade de dialogar com o defensor público Johny Giffoni, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Pará. De acordo com o defensor, para que o processo de licitação do empreendimento já estivesse avançado ao ponto que está, as populações tradicionais deveriam ter sido consultadas previamente, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), decretada no Brasil em 2004.
Diante disso, a curiosidade que intriga é que sem que a população tivesse o direito à consulta respeitado, o processo licitatório já está sendo concretizado. As datas das audiências públicas já foram divulgadas no Diário Oficial do Estado (DOE), porém, essas audiências não são para consultar as populações, servem somente para dar publicidade ao procedimento de licitação. “Onde fica a consulta e informação às comunidades afetadas? Isso já está em um estágio bem avançado, mas as comunidades ainda não foram ouvidas. Quem decide como e quando tem que ser feita a Consulta Pública é a comunidade”, questiona Johny.
Interesses econômicos
Com o objetivo de transportar 170 milhões de toneladas ao ano de minerais para o mercado interno e externo, a construção da Ferrovia Paraense S. A. (FEPASA) pretende integrar o Sul do Pará ao Norte do estado, para facilitar o escoamento da produção mineral que atenderá os mercados da China, Japão, Estados Unidos e Europa. São projetados 1.312 km a partir de dois trechos, os quais atravessarão 23 municípios. Trata-se do trecho Sul, que liga Santana do Araguaia a Morada Nova, em Marabá, e o trecho Norte, que liga Morada Nova a Barcarena, no Porto de Vila do Conde. Na altura de Rondon do Pará haverá uma ligação entre a Ferrovia Paraense e a Estrada de Ferro Carajás, beneficiando ainda mais o empreendimento da Vale.
No estudo prévio apresentado pela parceria público privada foram identificadas 32 minas, sendo 16 delas consideradas com potencial para o empreendimento. Com base neste potencial, 50% é voltado à extração de minério de ferro, 30% de bauxita, 14% de grãos e fertilizantes, 3% de container/celulose e outros, além de 3% de combustível vindo do monocultivo de dendê.
“Muitos postos de gasolina estão surgindo e se espalhando nestes territórios. O governo vem fazendo potes, criando a infraestrutura. Estamos diante de uma situação em que os conflitos tendem a crescer”, avalia Guilherme Carvalho, coordenador da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) Programa Amazônia.
Dividindo as responsabilidades, Estado e empresas privadas iniciaram a fase de licitação e audiências públicas depois do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) do projeto providenciado pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (SEDEME) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) resultante deste estudo que, segundo o promotor, ambos foram estranhamente publicados na mesma data, no dia 17 de junho, dando início imediato ao prazo das audiências para o licenciamento.
Por sua vez, o estudo desconsidera as comunidades quilombolas reconhecidas em nível estadual pela Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (MALUNGU), destacando como “impedimentos gerenciais” somente as reconhecidas nacionalmente pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ). Da mesma forma, somente os agricultores assentados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) são destacados, desconsiderando os registrados no Instituto de Terras do Pará (ITERPA).
Nenhum impacto é indireto
Os estudos do empreendimento alegam que nenhuma comunidade tradicional será diretamente atingida, porém, pelo menos 770 propriedades já foram mapeadas para que essas famílias assentadas sejam remanejadas. “Eles fizeram um estudo analisando os impactos diretos e indiretos. Mas não há impactos indiretos, porque todas as consequências são impactos diretos”, pontua o defensor público.
Compartilhando o sofrimento do impacto negativo trazido pelo agronegócio, muitas pessoas tiveram a oportunidade de relatar mudanças em seus modos de vida diante do avanço capitalista nos territórios em que haviam construído suas histórias. Joércio Pires da Silva, por exemplo, conhecido como Leleco, descreveu as diversas formas de violência sofridas pelos moradores da comunidade quilombola Santa Rosa dos Pretos, no estado do Maranhão, onde mora, diante da instalação dos trilhos da empresa Vale. “A Vale fingia que fazia oficina na nossa comunidade, mas era para pegar informações. Hoje a gente sofre com a falta de farinha. O pessoal perdeu a terra onde produzia. É um impacto causado diretamente. Sem ter o que fazer, como trabalhar, as pessoas vão para as cidades e chegam lá vão para as periferias”, avalia.
“Eu já chorei com o impacto ambiental sobre o nosso igarapé com a Biopalma lá. Índio gosta de tomar um chibezinho em um igarapé bem mineral. Em 2010 eu emagreci porque a Biopalma prometeu um monte de coisa e não cumpriu nada. O nosso território era gelado, escuro e muito bonito. Hoje a gente não tem nada. Os perversos acabaram com tudo”, lamentou o indígena Emídio Tembé, da aldeia Tekenay, na Terra Indígena Turé-Mariquita, localizada no município de Tomé-Açu, área onde se instalou a empresa Biopalma da Amazônia voltada à extração de dendê, cujo monocultivo tem provocado sérios problemas ambientais e de saúde à população.
Para Lourenço Bezerra, educador da Fase Amazônia, que vem acompanhando projetos comunitários na região, os impactos já estão ocorrendo antes mesmo da implementação completa do empreendimento e ultrapassam o nível da devastação do bioma. “As mudanças na paisagem já estão acontecendo no entorno. O impacto não é só ambiental, mas também social e cultural”, avalia.
Ao final do encontro, o público presente elaborou conjuntamente uma carta de repúdio à arbitrariedade sobre a construção da ferrovia que ameaça a vida de indígenas, quilombolas, camponeses, agroextrativistas, ribeirinhos, bem como do ecossistema em que vivem. Clique no link abaixo para ler documento.
Fonte: Fundo Dema