A luta indígena também é a luta da Defensoria Pública

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Comemorado no dia 19 de abril, o Dia do Índio é lembrado em todo o Brasil, principalmente por lideranças indígenas da região Amazônica. Mas você sabe quais as medidas tomadas para que os povos indígenas tenham seus direitos resguardados?

O artigo abaixo foi escrito pelo Defensor Público do Estado do Pará, Johny Giffoni, e aborda algumas recomendações, com base em dispositivos constitucionais, que precisam ser colocadas em práticas não só pela Defensoria Pública, mas também pelos diferentes órgãos do Sistema de Justiça e seus profissionais, na tentativa de orientar o atendimento e resolução de conflitos envolvendo direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.Leia abaixo:

Por  Johny Fernandes Giffoni, Defensor Público do Estado do Pará.

19.04

Hoje, dia em que os “brancos” instituíram como sendo o “dia do índio” não poderia deixar de emitir um breve relato sobre meus “parentes”. Saúdo a todos os “parentes” e nações indígenas, que lutam pelo reconhecimento de sua identidade e de sua cultura, para que a Constituição de 1988 seja realmente efetivada no que tange a garantia da cidadania diferenciada aos povos indígenas.

A Convenção 169 da OIT estabeleceu em seu art. 8º, quanto a aplicação da legislação nacional aos povos indígenas, que:

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio.

Ocorre que diariamente este dispositivo de direito internacional, internalizado pelo Decreto Legislativo 143 de 20 de junho de 2002 é desrespeitado. Não raras são as vezes que os aplicadores do direito deixam de aplicar as normas de direito indígena e direito indigenista em suas decisões, deixando de levar em conta o que estabelece a Constituição Federal de 1988, no tocante a garantia ao direito à cultura, identidade e costumes, direitos estes que devem ser observados quando estamos diante de uma situação que envolva um indígena, seja ele morador da cidade ou da aldeia.

Quanto à atuação da Defensoria Pública, indicamos a fundamentação constitucional e legal que justifica nossa atuação na seara do direito indígena. Estabelece a Constituição Federal, em seu art. 134 que a Defensoria Pública é:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)

Deste dispositivo se estabelece como sendo função institucional, baseando-se no seu papel de instrumento do regime democrático a: A) Orientação Jurídica; B) A promoção dos direitos humanos e C) A Defesa, seja judicialmente ou extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, das pessoas necessitadas economicamente e em condição de vulnerabilidade.

Neste contexto, trazemos os ensinamentos da Professora e Defensora Pública do Rio de Janeiro, Glauce Franco:

(…) é de que se pode considerar a Defensoria Pública expressão e instrumento, precipuamente, de democracia direta. E, mais especificamente, constitucionalmente compreendida a Defensoria Pública, nos expressos termos da redação da Emenda n. 80/2014, como instrumental democrático, como se densifica o conceito de necessitado, considerando que tanto a Instituição como a sua missão institucional expandem-se na mesma proporção em que se expressam as expectativas dos atores sociais e se expandem as demandas por justiça? (…) A Constituição de 1988 instaurou paradigmas inteiramente inéditos no ordenamento jurídico brasileiro, seja pela variedade dos temas tratados, seja pela preocupação e consequente inserção dos direitos sociais de natureza prestacional no âmbito de um extenso, abrangente e aberto rol de direitos fundamentais de diferentes dimensões, seja, ainda, especialmente, pela abundância de normas ricas de um conteúdo axiológico altamente pluralista. (I relatório nacional de atuação em prol de pessoas e/ou grupos em condição de vulnerabilidade/ Organização Glauce Franco, Patrícia Magno. – Brasília: ANADEP. 2015. Pag. 14-15)

Por outro lado a Lei Complementar 80/1994, alterada pela Lei Complementar 132/2009, estabeleceu como sendo objetivos da Defensoria Pública, em seu art. 3º A:

I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

No art. 4º da referida Lei Complementar, estabelece as funções institucionais em XXII incisos, dentre eles podemos destacar:

I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus;

III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico;

VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando peran­te seus órgãos;

VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;

VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal;

X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;

XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado;

XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais;

XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas;

XXII – convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais.

A Constituição em seus art. 231 e 232, estabelece que:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

Quanto a interpretação dos dispositivos Constitucionais em questão podemos trazer a baile os ensinamentos do Ministro Ayres Brito:

Os arts. 231 e 232 da CF são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o protovalor da integração comunitária. Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural. Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não índios, pois a aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da identidade étnica. (Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, julgamento em 19-3-2009, Plenário, DJE de 1º-7-2010.)  

Na tentativa de pensar formas de tornar o sistema de justiça mais acessível a causa indígena, bem como na tentativa de pensar formas de legitimar os preceitos da convenção 169 da OIT, ocorreu o Seminário “A Reforma da Justiça no Brasil: uma década de desafios e conquistas em uma perspectiva latino-americana”[1], que aconteceram nos dias 17, 18 e 19 de novembro de 2015, na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, onde foi realizada roda de conversas tendo como Temática “Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais”, tendo dentre outras estabelecido as seguintes:

3.2. Recomendações para a atuação de diferentes órgãos do Sistema de Justiça e seus profissionais no atendimento e resolução de conflitos envolvendo direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais.

3.2.1. Implementar, no âmbito das Defensorias Públicas, atendimentos que operem não somente pela atuação judicial e pelo acompanhamento de políticas públicas, mas também pela promoção de uma política de educação em direitos, com a participação de indígenas e quilombolas no planejamento dessa ação; 3.2.2. Promover atendimento externo e específico das Defensorias Públicas no local onde habitam os povos tradicionais; 3.2.3. Que as Administrações das Defensorias Públicas estimulem o desenvolvimento de práticas voltadas à difusão dos Direitos Humanos e à prestação de assessoria jurídica aos grupos indígenas e comunidades tradicionais; 3.2.4. Recomendar à Defensoria Pública da União – DPU que lote os defensores públicos onde os povos indígenas se fazem presentes; 3.2.5. Criar um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça – CNJ para ouvir os posicionamentos e contribuições dos povos indígenas e comunidades quilombolas nos debates relacionados à Justiça e, também, à “Reforma da Justiça”; 3.2.6. Recomendar ao sistema de justiça que garanta a presença de um intérprete em todas as fases dos processos que tenham réus indígenas; 3.2.7. Recomendar às instituições do sistema de justiça que nos processos atinentes à destituição do poder familiar envolvendo criança indígena, esta seja reinserida em família indígena; 3.2.8. Estimular a observância, por parte dos Defensores Públicos, da condição especial dos indígenas, no que tange à “Cidadania Diferenciada”; 3.2.9. Estimular a aplicação do multiculturalismo e do pluralismo jurídico como fundamento da defesa dos direitos indígenas, seja na esfera judicial seja na esfera extrajudicial; 3.2.10. Estimular o reconhecimento de formas próprias de justiça na resolução de conflitos surgidos no âmbito das comunidades indígenas, desde que estejam em conformidade com as normas de Direitos Humanos, e estimular a harmonização do sistema jurídico Estatal com o sistema jurídico-cultural indígena.

Neste dia, devo tecer homenagem ao meu querido amigo e mestre Dr. Mario Luiz Prints, Defensor Público do Estado do Pará, um dos primeiros Defensores Públicos a levantar a possibilidade da atuação dos Defensores Públicos na seara dos Direitos Indígenas, e a minha colega Defensora Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, Dra. Neyla Ferreira Mendes, incansável na Defesa dos direitos dos indígenas Guarani Kaiowá, bem como a todos os indígenas que habitam as aldeias e os indígenas da cidade, que lutam contra a opressão dos “brancos” que duram mais de 500 anos.

Neste dia de luta e de conquistas, após quatro anos em processo de formação e aprendizagem em sala de aula, a primeira turma do curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade do Estado do Pará (Uepa), composta por 72 índios das etnias Tembé, Gavião e Suruí Aikewara, realizou na data de hoje sua cerimônia de formatura.

Deve ser lembrado também a atuação da Associação de Indígenas da Região Metropolitana de Belém (AIAMB), e da Fundação Paulo Villas Boas, que juntamente com outras instituições no Estado do Pará, lutam pelo reconhecimento e valorização da identidade indígena.

Por fim, acredito que nós Defensores Públicos devemos nos somar a luta dos povos indígenas, aplicando a Convenção 169 da OIT nos diversos problemas enfrentados pelos indígenas tais como problemas relacionados a seara criminal, cível, família, possessória, do direito ao nome, direito da criança e do adolescente, dentre outros.

Que este dia nos sirva como instrumento de lembrança de nosso compromisso institucional com este povo.